Entidades acadêmicas do país se organizam para impedir que o governo federal prossiga com a implantação do Exame Nacional de Ingresso na Carreira Docente, avaliação de conhecimentos, competências e habilidades instituída pelo Ministério da Educação (MEC) em maio deste ano. Previsto para entrar em vigor ano que vem, o exame servirá como referência para Estados e municípios contratarem professores da educação infantil e dos ciclos iniciais do ensino fundamental. O novo método de seleção pode ser comparado ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), uma vez que o candidato fará a prova e poderá usar a nota para ingressar em qualquer uma das redes de ensino que aderirem ao programa.
Em debate sobre o assunto, durante a 33ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), realizada em Caxambu, Minas Gerais, educadores acusaram o ministério de elaborar a nova política sem discutir com as entidades representativas e especialistas da área educacional. De acordo com as críticas, a proposta de exame nacional coloca em risco o atual modelo de formação de professores, tanto no magistério como nos cursos de pedagogia das universidades, além de atender a interesses comerciais de grupos privados nacionais e internacionais que atuam no setor de testes de avaliação.
A presidente da Anped, Dalila Andrade Oliveira, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), se reuniu recentemente com o ministro da Educação, Fernando Haddad, para pedir a revogação da medida. Ele se negou a revogar, mas se viu obrigado a publicar outra portaria, que criou um comitê de governança para discutir o tema. Agora, as entidades desse grupo vão se reunir dia 25 para tentar convencer o MEC a voltar atrás na decisão, relatou Dalila.
O comitê de governança é formado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão ligado ao MEC que vai administrar o exame, representantes das secretarias municipais e estaduais de educação e de trabalhadores e entidades acadêmicas, como a Anped, a Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae) e o Fórum Nacional de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Educação (Forpred).
Segundo Márcia Ângela Aguiar, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a maior preocupação da comunidade acadêmica é que o exame de ingresso ao magistério prejudique o atual modelo de formação de professores no país. A luta pela valorização da carreira e da formação docente, que vem desde a década de 1980, agora corre o risco de se enfraquecer de diversas formas. Uma delas é pela indução a um perfil de formação focado apenas na avaliação. Quando o exame nacional sair, com seus conteúdos explicitados, ele poderá induzir as agências de formação [magistérios e cursos de pedagogia] a um trabalho reducionista, o que terá um impacto terrível na qualidade do processo de aprendizagem nas escolas, explica Márcia Ângela.
O professor Luiz Carlos de Freitas, especialista em políticas educacionais de avaliação da Unicamp, trata o fenômeno como estreitamento curricular do magistério e dos cursos de pedagogia. Além disso, ele chama atenção para um viés que privilegia interesses econômicos de grandes grupos da indústria de testes educacionais.
Há programas de multinacionais que treinam o aluno de pedagogia por cinco meses e o considera pronto para entrar na sala de aula. O exame nacional é o mecanismo que cria o mercado em escala e a padronização que faltavam para o negócio das grandes empresas de avaliação e tutoria. O grande efeito deletério dessa medida é a criação de padrão nas escolas, critica Freitas.
O diretor da secretaria de Educação Básica do MEC, Marcelo Soares da Silva, esclareceu que a operacionalização do exame será definida pelo Inep em conjunto com as entidades do comitê de governança que acompanham o assunto. Ele diz ainda que o governo saberá estabelecer regras claras para uma eventual atuação do mercado.
O alerta mercadológico é pertinente. No entanto, o governo já demonstrou que a definição das orientações e da condução de políticas públicas não se dá pelo mercado, mas por diretrizes formuladas pelo Estado brasileiro, avalia Silva. Segundo ele, um exemplo claro de política pública de larga escala é o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Quem define os parâmetros e os critérios de seleção e avaliação dos livros é o Ministério da Educação, quem escolhe os livros são as escolas. Não é o mercado que determina quais os livros, que linha pedagógica, qual conteúdo, afirma o diretor.
Sobre o estreitamento curricular das agências de formação de professores, Silva reiterou que o exame nacional dos professores ajudará a fortalecer as carreiras e a dinamizar o processo de contratação de professores, principalmente em municípios com pouca capacidade técnica e financeira para promover concursos públicos.
Outro temor dos especialistas é a abolição dos concursos e de direitos para o ingresso dos professores na rede pública. Muitos professores no Brasil trabalham por menos de dois salários mínimos, não têm direito a férias nem garantia de emprego, observa Dalila, da Anped.
Fonte: O repórter viajou a convite da Anped