A cada nova safra, um exército de mil homens (e mulheres) é recrutado para trabalhar nos canaviais da usina Vale Verde, em Baía Formosa, a segunda maior usina de açúcar e álcool do Rio Grande do Norte. Em todo o estado, o número de convocados chega a oito mil. Soldados que tem como arma o facão e como adversário um canavial extenso, que precisa ser queimado antes de receber os primeiros golpes. No final, não há vencedores. Homens e cana tombam, entregando o que tem de mais valioso: a energia. O recrutamento cai à medida que a mecanização avança. Enquanto isso, a produção sobe.
Boa distribuição de chuvas, parcerias com fornecedores, aporte de recursos e ampliação da capacidade de moagem, aliados ao uso de máquinas, farão a safra dar um salto no rn este ano
Enquanto o Rio Grande do Norte, que possui duas usinas e duas destilarias, espera colher 15% a mais de cana de açúcar nesta safra, a usina Vale Verde Baía Formosa, do Grupo Farias, pretende colher 40% a mais. A mecanização explica, em parte, o crescimento acima da média. Boa distribuição de chuvas, parcerias com fornecedores, aporte de recursos e ampliação da capacidade de moagem, que passou de 200 mil toneladas para 400 mil toneladas por ano, também justificam o incremento na produção, recorde desde que a usina passou a operar, há 37 anos.
Gerente agrícola das usinas Vale Verde Baía Formosa (RN) e Vale Verde Pedroza (PE), Arnaldo de Andrade Costa, lança um alerta: "apesar do incremento na produção, nem todo mundo ficará na usina". A Vale Verde Baía Formosa emprega 1,5 mil pessoas. No período de safra, o número aumenta 67% e o número de funcionários, entre fixos e temporários, sobe para 2,5 mil. O percentual deverá ficar cada vez menor. A atividade emprega 12 mil pessoas durante a safra no RN, entre fixos e temporários. O número cai para 4 mil na entressafra. "Com a mecanização, não haverá mais oscilações entre contratações e demissões", sentencia o gerente agrícola, há 20 anos na usina do Rio Grande do Norte.
A usina Vale Verde Baía Formosa já possui seis colheitadeiras – cada uma substitui até 80 cortadores de cana. Até outubro, deve receber mais seis. Arnaldo de Andrade acredita que, se continuar neste ritmo, a usina conseguirá mecanizar até 80% de sua colheita nos próximos quatro anos. "É uma tendência mundial". Em todo o mundo, patrões perceberam que "queimar a cana é queimar dinheiro", afirma Arnaldo.
Além de garantir a qualidade da cana, a colheita mecanizada poupa a palha, que passa a ocupar espaço central na cadeia produtiva. Misturada ao bagaço, a palha começa a alimentar a termoelétrica erguida dentro da usina, integrando uma cadeia que se retroalimenta. O incremento de 40% na produção representa dois meses a mais de geração de energia, calcula Arnaldo de Andrade, gerente da usina. Mais uma prova de que na natureza, nada se perde; tudo se transforma, como já havia constatado o físico Lavoisier.
A usina, que já foi a maior unidade industrial de álcool do Nordeste, começou a produzir açúcar há sete anos. Perdeu o posto, mas produz 400 mil litros de álcool e 12 mil sacos de açúcar. A proporção de açúcar e álcool varia de acordo com o mercado. Na safra atual, 60% da cana será transformado em açúcar e 40% em álcool. "O mercado do açúcar está remunerando melhor", justifica Arlindo Farias, vice-presidente do Grupo Farias e diretor das usinas Vale Verde Baía Formosa (RN) e Pedroza (PE).
Ele ressalta, porém, que aumentar a produção de açúcar não significa diminuir a de álcool. "Dá para produzir álcool a partir do mel do açúcar", esclarece. No RN, 80% da cana é transformado em açúcar e 20%, em álcool. Boa parte da produção é consumida no estado. O restante é vendido no Ceará ou exportado, segundo Renato Lima, presidente da Associação dos Plantadores de Cana do RN.
A safra encerra-se em fevereiro. O exército de cortadores voltará na seguinte. Só não se sabe até quando. Para Renato Lima, da Associação, a mecanização, que avança na usina Vale Verde Baía Formosa, é um caminho sem volta. "Existe uma lei que nos obriga a parar de queimar cana e mecanizar a colheita".
Trabalho passa de geração em geração
"Os pais não querem que os filhos cortem cana. Querem que os filhos trabalhem como operadores de máquinas". A frase de Arnaldo de Andrade Costa, gerente agrícola das usinas Vale Verde Baía Formosa e Vale Verde Pedroza, é personificada na figura de Severino Ferreira Barbosa, 48. Antes de ser contratado pela usina, Damião – apelido que lhe foi dado sem nenhuma razão aparente – foi vaqueiro. Aos 16 anos, começou a trabalhar como tratorista. Aprendeu o ofício com o pai e fez questão de repassar para o único filho, Alejandro Ferreira Barbosa, 19, também tratorista. O ofício é uma espécie de herança.
O pai de Damião aprendeu a dirigir trator com o pai, que aprendeu com o pai. Damião vai ensinar o ofício para o neto. Mas também não quer que o menino seja tratorista. Nem muito menos cortador de cana. "Meu neto vai ser doutor", diz apontando para o chefe, agrônomo. O menino tem apenas cinco meses, mas já carrega a responsabilidade de chegar onde ninguém na família conseguiu.
Jacinto Barbosa Soares, 24, também faz parte de um novo grupo de trabalhadores. Entrou na usina há três anos, recebendo pouco mais de R$400 por mês. Começou no campo, como faz questão de dizer, e hoje fiscaliza os trabalhadores. Recebe pouco mais de R$800 pelo serviço. Com o salário, comprou casa e livrou-se do aluguel. Também voltou a estudar e já faz o segundo curso de informática. "Abandonei o primeiro curso antes de terminar e não recebi o diploma", justifica. O jovem, que antes trabalhava numa fazenda, arrancando toco, limpando mato, adubando a terra, tem um só objetivo: "crescer". Se depender da fé de Damião e do esforço de Jacinto, a nova geração será de doutores, e não mais de cortadores de cana.