Dia e noite, sem parar, os caminhões chegam à Usina Vertente, em Guaraci (SP), carregados de cana-de-açúcar. Não demora muito, um guindaste é usado para erguer a caçamba e despejar os toletes de cana sobre uma enorme esteira rolante, a mesa alimentadora. Num dia bom, cada tonelada de biomassa engolida ali renderá, no fim da linha, 175 quilos de açúcar, 80 litros de etanol, 800 litros de vinhaça e uns 250 quilos de bagaço úmido. Não há resíduos. Nada é desperdiçado.
Não sobra nada da cana, diz o gerente industrial da usina, Luis Muradi. O açúcar vai para os supermercados, o etanol, para os postos de combustível. A vinhaça é enviada de volta ao campo, como fertilizante. Parte do bagaço é queimada ali mesmo, numa caldeira, para produzir a energia elétrica que faz a usina funcionar. Outra parte desemboca numa montanha de bagaço ao ar livre, com quase 30 metros de altura.
O ideal seria que essa montanha não existisse. Mas ela está longe de ser um resíduo. Pelo contrário: a bioeletricidade gerada pela queima do bagaço de cana pode ser um produto tão importante para a sustentabilidade energética do País quanto hoje é o etanol. O futuro das usinas está na bioeletricidade e no álcool. Acho que o açúcar vai ficar em terceiro lugar, prevê o diretor da usina, Hugo Cagno Filho. A rentabilidade da cogeração é muito maior.
Inaugurada em 2003, a Vertente processa 7.500 toneladas de cana por dia. Com a caldeira e o gerador atual, produz 8 megawatts de bioeletricidade. Consome internamente 6,5 megawatts e exporta o restante para a rede de distribuição. Até 2013, com a construção de uma nova caldeira e a instalação de mais dois geradores, o plano é ampliar a produção para 40 megawatts, dos quais 30 serão vendidos (o suficiente para abastecer 60 mil pessoas). É eletricidade limpa, já que as plantas que estão crescendo no campo reabsorvem, via fotossíntese, o carbono emitido pela queima do bagaço na caldeira. Isso ocorre sucessivamente, safra após safra.
Excedentes. Todas as 434 usinas de açúcar e álcool do País são autossuficientes em energia, graças ao bagaço de cana, e 100 delas já vendem excedentes para o sistema integrado nacional. Essa bioeletricidade contribuiu, em 2009, com 670 megawatts médios para a rede, ou quase 2% da energia consumida no País, segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). E há muitas montanhas de bagaço para queimar.
Temos uma reserva gigantesca de energia adormecida nos canaviais, diz o presidente da Unica, Marcos Jank. Somando o bagaço que sobra nas usinas à palha que sobra no campo após a colheita mecanizada (que hoje não é aproveitada), o setor prevê ter biomassa suficiente para produzir 13 mil megawatts em 2020. Isso equivale a três vezes o que deverá produzir a Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. E é suficiente para suprir 14% do consumo nacional estimado para 2019, quando está previsto o início da operação de Belo Monte.
O Brasil vai precisar de sete usinas de Belo Monte para atender sua demanda de energia até 2020. Três delas podem vir dos canaviais, diz o economista Zilmar José de Souza, assessor de bioeletricidade da Unica.
O incentivo à bioeletricidade seria uma forma de ampliar ainda mais o papel da cana-de-açúcar como fonte de energia limpa – além da produção de etanol, que já movimenta 55% da frota de veículos leves do País. O desafio de acordar esse gigante adormecido dos canaviais, porém, não cabe apenas à indústria, afirma Jank. Este é um setor que depende demais de políticas públicas.
Faltam incentivos para modernização das usinas e infraestrutura de conexão à rede. As usinas que não exportam energia trabalham com caldeiras antigas, de baixa pressão, que queimam muito bagaço para produzir pouca energia. Seria preciso fazer um amplo programa de troca de caldeiras, para inserir essas usinas no sistema, afirma Souza. O chamado retrofit, porém, só vale a pena para o usineiro quando a caldeira atual está no fim da vida útil. Antes disso, diz Souza, só com algum incentivo do governo.
As caldeiras mais modernas chegam a 100 bar de pressão. A Vertente trabalha com uma de 45 bar, que deverá dar lugar a uma de 65 bar em 2013. O custo estimado do projeto – incluindo caldeira nova, dois geradores de 20 MW e 11 quilômetros de linhas de transmissão – é de R$ 100 milhões. Custo que Cagno Filho espera pagar com recursos do BNDES e da venda de energia. A ideia é cogerar o ano inteiro e acabar de vez com essa montanha de bagaço. Hoje não faz sentido ampliar a capacidade de moagem sem ampliar a capacidade de cogeração. Uma coisa está casada com a outra.
Segundo o gerente setorial do Departamento de Biocombustíveis do BNDES, Artur Milanez, o volume de recursos desembolsados pelo banco para projetos de cogeração com bagaço de cana aumentou dez vezes em cinco anos: de R$ 130 milhões, em 2004, para R$ 1,3 bilhão, em 2009. A carteira atual tem 83 projetos contratados, com capacidade para gerar 2.475 MW. A demanda é muito grande, e ainda há muito espaço para crescer.
Apesar de todo o potencial e expectativa, os ventos não sopraram a favor da biomassa de cana nos últimos leilões de energias renováveis, promovidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) na semana passada. Dos 73 projetos habilitados, só 12 foram contratados, totalizando 190 MW. A grande vencedora foi a energia eólica, com 899 MW contratados, divididos em 70 projetos. O preço médio pago foi de R$ 130/MWh, ante R$ 144/MWh da bioeletricidade.
Os produtos da cana-de-açúcar já contribuem com 18% da energia ofertada no País, mas quase tudo isso se refere ao uso do etanol como combustível de veículos. A participação da bioeletricidade é bem menor. Segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do Ministério de Minas e Energia, quase 90% da eletricidade produzida no País em 2009 veio de fontes renováveis – principalmente a hidráulica, com 83,7%. A biomassa (incluindo bagaço de cana , lenha e outros materiais vegetais), contribuiu com 5,9% e a eólica, com um modesto 0,3%.
Sol e vento. Além da biomassa, estudos mostram que há um enorme potencial ainda não aproveitado em energia eólica e solar no País, que poderia substituir os 10% de eletricidade que ainda são gerados em usinas nucleares e térmicas, movidas a combustíveis fósseis. Transformar esse potencial em capacidade instalada, porém, exige superar uma série de gargalos econômicos, tecnológicos, logísticos e regulatórios. A previsão é de que a participação proporcional de fontes renováveis na matriz energética não mudará radicalmente nas próximas décadas.
O carro-chefe continuará a ser a energia hidrelétrica. As outras renováveis vão crescer pouco a pouco, prevê o diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica, Nelson Hubner. A energia eólica, segundo ele, continuará a crescer, mas nunca deixará de ser uma fonte complementar. A solar, por sua vez, só deverá se tornar economicamente competitiva daqui a 10 ou 20 anos.
Para o pesquisador Sergio Colle, coordenador dos Laboratórios de Engenharia de Processos de Conversão e Tecnologia de Energia (Lepten), da Universidade Federal de Santa Catarina, o Brasil poderia ser muito mais ambicioso no aproveitamento de seu potencial em termos de energia solar e eólica. O País não pode se dar ao luxo de ficar de braços cruzados e desperdiçar oportunidades, só porque nasceu no berço esplêndido das hidrelétricas e da biomassa.
Fonte: Estadão, em 01/09/2010